
Desde a pandemia de covid-19, a cada ano, em média 618 brasileiros registram testamento vital em cartório para ter suas vontades respeitadas no que se refere a cuidados de fim de vida, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil. Elfriede Galera, ou Frida, que morreu em 2019, tinha câncer em estado terminal e publicou seu testamento vital na internet
Jadyr Galera/BBC
O caso era o de um paciente com câncer cerebral muito agressivo e que tinha pedido para receber cuidados em casa, sem ser levado ao hospital.
Quando ele piorou, os médicos queriam que ele fosse hospitalizado e a esposa teve que brigar para o desejo do paciente ser respeitado.
“Não [teve que brigar] judicialmente porque não chegou até lá, mas ela teve de fazer inúmeras rodadas de reuniões, inclusive ameaçando processar os profissionais se eles descumprissem a vontade do marido. E o fato de o documento existir e de estar lavrado em cartório foi determinante para os médicos dizerem ‘ok, então vamos fazer do jeito que ele queria’.”
O documento a que a advogada e bioeticista Luciana Dadalto se refere é um testamento vital, também conhecido como diretivas antecipadas de vontade.
Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil, desde a pandemia de covid-19, a cada ano, em média 618 brasileiros vêm registrando documentos desse tipo em cartório para ter suas vontades respeitadas no que se refere a cuidados de fim de vida. Não se sabe ao certo, no entanto, quantos testamentos vitais estão sendo escritos hoje no país, já que não há obrigatoriedade de lavratura.
A BBC News Brasil conversou com Luciana Dadalto, autora do livro Testamento Vital, agora em sua sexta edição, e com médicos que atendem pacientes em situações que envolvem risco de vida para saber mais sobre esse documento.
O que é testamento vital e quem pode fazer um? É preciso buscar aconselhamento profissional para se escrever um testamento vital? O que diz esse documento? Qual é seu peso legal?
A seguir, você também confere histórias que revelam o tipo de impacto que documentos desse tipo podem ter nos momentos finais da vida de quem os escreve.
O que é um testamento vital?
Testamento vital é um documento por meio do qual uma pessoa lúcida, com capacidade de tomar decisões, registra suas vontades positivas e negativas — ou seja, o que quer e o que não quer — no que diz respeito a cuidados de saúde em situações de irreversibilidade, diz Luciana Dadalto em entrevista à BBC News Brasil.
Além de atuar como advogada especializada em Direito Médico, Dadalto também aconselha clientes que querem fazer um testamento vital.
O testamento vital só passa a valer quando a pessoa perde a capacidade decisória, explica. Quem faz um documento como esse está pensando na possibilidade de chegar ao final de sua vida gravemente doente e sem condições de expressar sua vontade, explica Dadalto.
“Ou seja, estou diante de uma situação incurável, irreversível, intratável — e a pessoa não consegue mais se manifestar, então a gente não consegue perguntar para ela o que ela quer. Por isso, ela toma essas decisões antecipadamente.”
O testamento vital passa a valer quando a pessoa perde a capacidade decisória, diz especialista
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Qual é o valor legal de um testamento vital?
No Brasil, qualquer pessoa maior de 18 anos considerada capaz diante da lei pode fazer um documento desse tipo. Mas não existe legislação específica sobre testamentos vitais, diz Dadalto. O que existe é jurisprudência.
Ela explica: em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução dizendo que médicos deveriam respeitar a vontade do paciente em situações como essa. A resolução também dizia que familiares não podiam desrespeitar essa vontade.
“Quando essa resolução foi publicada, um procurador de Justiça ajuizou uma ação dizendo que o CFM não tinha o poder de fazer lei. Então, tivemos uma decisão judicial dizendo que o CFM não tinha feito uma lei, mas tinha regulamentado a conduta ética dos médicos diante desse documento”, diz Dadalto.
O tribunal declarou ainda que o testamento vital estava protegido pela legislação brasileira, ela prossegue.
“A decisão também esclareceu que a Constituição Federal fala do direito à autonomia e fala no fundamento da dignidade da pessoa humana.”
Então, não temos uma lei, mas temos decisões judiciais, diz a advogada.
“Inclusive, no final do ano passado, quando decidiu sobre um caso de recusa de hemotransfusão por testemunha de Jeová, o Supremo Tribunal Federal (STF) disse que esses documentos são legais, são lícitos.”
Dadalto aconselha, no entanto, que para aumentar as chances de que o testamento vital seja respeitado, o autor ou seu representante deve lavrar o documento em cartório e cópias devem ser entregues a pessoas de confiança — parentes, amigos e profissionais.
A advogada relata um caso de que tomou conhecimento, de uma filha que tinha uma doença grave e era cuidada domiciliarmente. A paciente tinha feito um testamento vital explicando que, quando piorasse, não queria ir para a UTI. Queria ser cuidada em casa. Tinha deixado o documento com a mãe e avisado os médicos.
“Quando ela piorou, os médicos pediram o documento para a mãe, mas a mãe se recusou a entregar.”
“Ela disse: não vou entregar porque quero que vocês levem minha filha para a UTI e eu sei que se eu entregar esse documento, vocês não vão fazer isso.”
“Os médicos não tinham como provar que essa era a vontade da paciente”, diz Dadalto.
“Mas acho importante dizer que, mesmo nos Estados Unidos, país que inventou esse documento, onde temos lei desde a década de 1990, existem casos de descumprimento. Não é a lei que vai mudar isso ou zerar esse risco.”
Preciso de um profissional para escrever meu testamento vital?
No Brasil, não há regras sobre como devem ser feitos os testamentos vitais, explica Luciana Dadalto.
“Como a gente não tem lei, o advogado ajuda a dar segurança jurídica para esse documento. Mas se a pessoa tiver de fazer uma escolha financeira — digamos, onde vou gastar dinheiro? —, eu entendo que o auxílio de um profissional de saúde é indispensável. Porque esse é um documento técnico. Como vou recusar ou aceitar uma traqueostomia se não sei o que isso é?”
O médico paliativista Rodolfo Morais, que atende na Santa Casa e no Hospital do Câncer em Franca, interior de São Paulo, é um profissional de saúde que rotineiramente aconselha pacientes sobre testamentos vitais.
Paliativistas são médicos que atendem pacientes com doenças graves e que colocam a vida em risco.
O que ele aconselha a alguém que deseja fazer um testamento vital?
“A gente precisa ser neutro nessas horas para não influenciar as decisões da pessoa”, diz Morais em entrevista à BBC News Brasil.
Morais explica que suas recomendações médicas vão depender dos princípios e valores do paciente e daquilo que é possível ser feito no caso dele.
“Se uma pessoa traz como valor ‘eu quero viver, mesmo com sequelas, quero viver o máximo possível, mesmo que isso me custe um certo grau de sofrimento’, nesse caso, minha recomendação é que você não exclua (do seu testamento vital), por exemplo, a intubação, porque pode ser um procedimento que faça sentido para você.”
“Isso é importante para aquela pessoa, é um valor dela, é um respeito”, diz o médico.
“Agora, se for o contrário, e a pessoa disser, eu não quero viver de forma alguma em estado de dependência, acamada, minha recomendação para essa pessoa vai ser, vou citar um exemplo: vamos tirar a possibilidade de nutrição enteral [administrada diretamente no trato gastrointestinal por meio de sonda] se você estiver em estado vegetativo.”
O médico observa, no entanto, que quando os pacientes têm a oportunidade de planejar seu futuro, de pensar sobre isso, a maioria prefere um fim de vida mais natural, com prioridade no conforto.
“Aliás, esse é o medo mais comum, que leva muitas pessoas a fazer o testamento vital: o medo do sofrimento, o medo de ter a sua vida prolongada, sem nenhum sentido, ou levando a uma situação de sequelas.”
Morais lista medidas e tratamentos que pacientes com esse perfil costumam vetar no seu testamento vital: “A reanimação cardiopulmonar, por exemplo. E, principalmente, o prolongamento artificial da vida através de máquinas. Ventilação mecânica, hemodiálise, especialmente em situações de terminalidade, porque a terminalidade por si só já é uma definição de um fim de vida. Então, quando a gente vai na contramão disso, a tendência é aumentar o sofrimento mantendo o mesmo desfecho.”
“O testamento vital é a representação da autonomia, da autodeterminação da pessoa. Então, ela tem esse direito”, diz Morais.
Mas ele faz uma ressalva: “Desde que aquilo que ela escolha como caminho seja algo ético e dentro das normas do nosso país. Uma pessoa não pode colocar no testamento vital que quer a eutanásia porque isso é crime no nosso país. Quer dizer, ela pode pôr, mas não vai ter validade.”
Amante da vela, Frida pediu em seu testamento vital que suas cinzas fossem jogadas no mar e convidou amigos velejadores para a cerimônia. Leia mais abaixo
Jadyr Galera/BBC
‘Alívio, respaldo e segurança’ para o médico
Rodolfo Morais confessa que sente grande alívio quando o informam de que um paciente em estado grave tem um testamento vital.
“Nesse caso, sei que vou poder ter acesso aos valores da pessoa, o que ela considerou tolerável ou inaceitável para ela.”
“Isso traz um alívio, um respaldo. Outra palavra que eu usaria é segurança em estar fazendo aquilo que o paciente quer. Porque, de acordo com a resolução do CFM que fala de testamento vital, a vontade do paciente tem que prevalecer.”
A médica intensivista e paliativista Sabrina Correa da Costa Ribeiro, que se define como uma ativista pelos direitos dos pacientes, também se diz aliviada ao saber que um paciente em situação crítica tem um testamento vital.
“O que está naquele documento vai me dar informações sobre quem é aquela pessoa e o que é importante para ela. Isso vai orientar a minha conduta na situação que eu estiver enfrentando”, diz Ribeiro, que é professora de Medicina Intensiva na Universidade Federal do Ceará e atende nos hospitais Geral de Fortaleza e Multiclínico, à BBC News Brasil.
Como a vontade expressa de um paciente pode impactar o desfecho de sua vida?
Pergunto a Ribeiro se ela se lembra de algum caso em que um testamento vital teve papel importante nos momentos finais da vida de um paciente.
“De testamento vital, não especificamente, mas de uma vontade expressa pelo paciente, e registrada em prontuário médico, me lembro de uma situação muito marcante”, responde a médica.
O caso aconteceu no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (FMUSP). Um paciente chegara ao pronto socorro com uma parada cardiorrespiratória. Ele tinha um cateter de diálise.
Pacientes que fazem diálise tendem a acumular potássio, o que poderia ter causado a parada cardiorrespiratória, explica Ribeiro. E, baseados nessa suposição, os médicos reanimaram, entubaram e medicaram o paciente.
“Então, ele estava com dois suportes à vida. O respirador e essa medicação que estava controlando a pressão arterial dele”, recorda Ribeiro. “Aí, a família chegou.”
A médica conta que a equipe acolheu a família e explicou o que tinha acontecido.
“E a família disse que ele tinha expressado o desejo de não ser reanimado, de não ir para a UTI, de não ser submetido a suporte artificial.”
“Porque ele já estava tendo outros comprometimentos além da doença renal, ele tinha diabetes, tinha cegueira, tinha outras complicações e ele não desejava ser mantido vivo de forma artificial.”
Ribeiro relembra o dilema vivido pela equipe.
“E agora?”
“Então, verificamos essa informação. Revimos o prontuário dele e havia esse registro. Tínhamos desrespeitado (a vontade do paciente) sem conhecimento.”
“A gente retirou o suporte, a gente retirou a medicação, o paciente ficou em cuidados de sintomas e faleceu algumas horas depois, acompanhado pela família.”
Ou seja, não se tratava de um testamento vital propriamente dito, prossegue Ribeiro.
“Mas havia uma documentação em um prontuário recuperado de uma internação anterior, sim”, diz. “O prontuário é um documento médico válido.”
Sabrina Ribeiro fala de uma outra ocasião, em que ajudou um paciente que não queria ter sua vida prolongada artificialmente a documentar seus desejos em prontuário.
“Dei uma cópia para ele quando ele teve alta, para que ele tomasse depois as providências. Porque ele não morreu, ele melhorou”, recorda a médica.
“E essa é uma coisa também, as pessoas têm muito tabu de falar sobre a morte. Elas acham que, porque se preocupam com o que pode acontecer, vão morrer. Mas o testamento vital não mata ninguém.”
Ribeiro reconhece, por outro lado, que falar sobre esse assunto não é para todo mundo. Muitos delegam essas decisões, ela diz.
“Tem gente que prefere ‘não, doutora, não precisa conversar comigo. Minha filha é que sabe de tudo isso’. Então, esse cuidado, essa conversa sobre esse momento do processo de finitude, tudo isso tem que ser feito de uma forma muito delicada e individualizada.”
“A morte é um fato”, reflete Ribeiro. “E a minha missão é fazer com que ela seja o mais digna e com o maior significado possível para aquela pessoa.”
“E onde é que entra o testamento vital nisso tudo?”, a médica pergunta.
“Sei de um testamento vital muito bonito, de uma paciente com câncer de mama, a Frida.”
Sabrina Ribeiro está falando de Elfriede Galera, que morreu em 2019 aos 64 anos de idade. Ela fazia campanha pela humanização do tratamento do câncer e ficou conhecida, entre outras coisas, por publicar seu testamento vital na internet.
O testamento vital de Frida
Em seu testamento vital, Frida escreve, entre outras coisas, que não quer procedimentos invasivos “quando já não tenho mais cura”.
Mas diz que talvez precise de oxigênio porque tem “pavor da falta de ar”.
Ela pede: “Caso necessário, peço pela sedação, sou sensível à dor. Não me alimentem. Quando meus órgãos já não estiverem mais no seu pleno funcionamento, isso só vai me fazer sofrer mais.”
Mas Frida não fala apenas de procedimentos médicos.
“Deixem todos me visitarem para que eles possam se despedir. Não me deixem só, precisarei de todos até o último suspiro.”
Velejadora, ela pede para ser cremada e suas cinzas jogadas no mar em uma caixa de madeira maciça para não poluir o ambiente.
“Convidem todos para a cerimônia, principalmente os amigos velejadores e amantes do mar. Permito que joguem ao mar somente pétalas de rosas (de qualquer cor).”
E escolhe a trilha sonora: a Sinfonia n.º 5 de Ludwig van Beethoven.
A cerimônia de despedida no mar, disse Jadyr Galera, viúvo de Frida, à BBC News Brasil, ainda está por vir.
A morte, quando finalmente chega, traz sofrimento, comenta Sabrina Ribeiro. Mas também pode ser uma oportunidade. “De se conseguir honrar, na morte, a vida inteira que a pessoa teve.”
Cuidados paliativos oferecem conforto e dignidade a doentes