Guerreiros do Passo: conheça o grupo de frevo que desfilou em Cannes com elenco de ‘O Agente Secreto’ e agora é Patrimônio Cultural do Recife


Com passistas de frevo, ‘O Agente Secreto’ é apresentado no Festival de Cannes
Um grupo de pessoas com roupas dos anos 40, sombrinhas de chuva e cores neutras no tapete vermelho do Festival de Cannes, na França. À primeira vista, pode parecer apenas personagens de um outro tempo. Mas, com um olhar mais atento, o que se vê é a história do frevo sendo contada, ali na capital europeia do cinema, pela agremiação recifense Guerreiros do Passo (veja vídeo acima).
A cena foi gravada em maio deste ano, durante a estreia internacional de “O Agente Secreto”, filme de Kleber Mendonça Filho protagonizado por Wagner Moura que venceu dois prêmios no festival.
Acompanhados pela orquestra e pelos passistas do Guerreiros do Passo, os atores e a equipe do longa deixaram ao balneário francês com cara de carnaval pernambucano. Três meses depois do desfile, o grupo, que completa 20 anos em setembro, foi declarado, nesta semana, Patrimônio Cultural Imaterial do Recife (saiba mais abaixo).
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“Foi um momento espetacular, foi a primeira vez que um grupo da cultura popular pisou no tapete vermelho de um dos principais símbolos do cinema mundial, Cannes. Fizemos um arrastão do Hotel Le Majestic Barrière até o tapete vermelho, regado a muito amor, orgulho e alegria”, contou Eduardo Araújo, um dos fundadores dos “Guerreiros do Passo”.
Para o representante do grupo, a sensação era de uma “final de Copa do Mundo, com o Brasil sendo o campeão”.
“Estar ali, representando Pernambuco, ver o frevo representando a cultura brasileira, a partir de suas raízes populares, foi muito potente. Foi um marco histórico para a nossa trajetória de 20 anos de trabalho, que insiste em resistir, criar e transformar. Foi o frevo dos Guerreiros do Passo”, disse.
‘O Agente Secreto’ tem estreia nacional no Recife
Cine Alvorada
Do lado de cá do Atlântico, surfando na fama da obra cinematográfica, que estreia no circuito comercial brasileiro em 6 de novembro, os Guerreiros do Passo participaram, na quinta-feira (7), de outra sessão especial do filme.
A convite do presidente Lula (PT) e da primeira-dama Janja da Silva, os artistas assistiram à produção, com Kleber Mendonça e outros convidados, no Palácio da Alvorada, em Brasília. A sessão foi chamada de “Cine Alvorada”.
“Apresentar nosso grupo ao presidente da República foi de uma emoção que não cabe em palavras. O artista sempre sonha alto, pensa, planeja e trabalha duro para que sua arte aconteça nas melhores condições e chegue aos patamares mais elevados. Nós, Guerreiros do Passo, sempre batalhamos e sonhamos, mas o que tem acontecido este ano supera muito do que imaginávamos”, contou.
Segundo o fundador da agremiação, o convite veio por meio da produção do filme, com reforço do presidente e da primeira-dama. De acordo com Eduardo, eles fizeram questão da presença do grupo, que se apresentou no evento junto com a Orquestra Popular do Recife.
A relação do grupo com Kleber Mendonça não é nova. A agremiação participou, ainda, do documentário “Retratos fantasmas”, lançado em 2023 pelo diretor pernambucano.
“Nada disso teria sido possível sem uma turma maravilhosa, que abraçou nosso trabalho e levou junto cada passista. Falo do projeto de divulgação do filme ‘O Agente Secreto’, e sou profundamente grato a todos que fazem parte dessa história, em especial a Emilie Lesclaux (produtora do filme e esposa do diretor) e a Kleber Mendonça Filho. Um casal que carrega o Recife no coração e na alma, que valoriza nossa terra”, disse.
Patrimônio Cultural Imaterial do Recife
Em meio à notoriedade causada por toda a expectativa em torno de “O Agente Secreto”, os Guerreiros do Passo foram declarados Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. O reconhecimento veio após a aprovação de um projeto de lei da vereadora Liana Cirne (PT) pela Câmara Municipal.
“É motivo de profundo orgulho para a gente. Esse título renova nossas forças, amplia nosso compromisso com a preservação do frevo e honra o legado do nosso Mestre Nascimento do Passo, do qual tivemos origem e somos discípulos”, comentou Eduardo Araújo.
Para ele, a conquista não pertence apenas ao grupo. “É de todos que acreditam na cultura popular como força transformadora. Esse reconhecimento nos coloca em outro patamar de respeito diante da gestão pública e do universo cultural ao qual pertencemos com tanto empenho”, conta.
“Guerreiros do Passo” no Palácio da Alvorada, em Brasília, durante evento para exibição do filme “O Agente Secreto”
Divulgação/Ricardo Stuckert
Pesquisa, formação e figurino
Fundado em setembro de 2004 por Eduardo Araújo, Lucélia Albuquerque e Valdemiro Neto, o Guerreiros do Passo tem o propósito de manter viva a força da dança que nasceu nas ruas do Recife, com um trabalho que vai além das apresentações, somando também ensino e pesquisa sobre o frevo. A atuação deles se desdobra em três pilares:
Ensino e formação: com o projeto “Frevo na Praça”, que realiza aulas abertas ao público para formar novos passistas. Os encontros acontecem aos sábados, a partir das 15h, na Praça do Hipódromo, na Zona Norte do Recife.
Espetáculo: na apresentação “O Frevo”, o grupo conta a história do ritmo a partir das décadas de 1940 e 1950, recriando no palco e nas ruas os figurinos, os personagens e a atmosfera de uma época que ajudou a moldar a identidade do frevo como o conhecemos hoje.
Pesquisa: com o “Laboratório do Passo”, a agremiação estuda a história do frevo para resgatar passos antigos, buscando entender o motivo de alguns terem desaparecido nas danças e encontrar maneiras de trazê-los de volta à prática.
“Nossa rotina é essa, ensino, pesquisa apresentações com o espetáculo. E tudo que fazemos, tem a intenção de tentar se manter praticando o frevo. Mesmo com as dificuldades que já enfrentamos, buscamos no dia a dia, nos mantermos firmes sem esmorecer e não deixar a sombrinha cair”, disse Eduardo.
Além dos fundadores, o grupo é composto, atualmente, por Laércio Olímpio, Joana Rosas, Willian Silva, Mestre Walter José, Edson Vogue, Carlos Luiz, Jamerson Júnior, Lucas Aguiar e José Cabral.
Guerreiros do Passo oferecem aulas coletivas aos sábados na praça do Hipódromo, na Zona Norte do Recife
Divulgação/Eduardo Araújo
Frevo raiz
Um dos elementos mais marcantes nas apresentações do grupo é o figurino, inspirado nos trajes usados pelos primeiros passistas de frevo, do século 19.
“Durante nossas pesquisas, mergulhamos no passado e colocamos uma lupa sobre aquela multidão que se apertava nas ladeiras e avenidas do Recife. Ali, entre empurrões, risos e suor, surgem as figuras que nos inspiram: trabalhadores, mulheres, bêbados, tipos populares que ajudaram a dar cara, corpo e alma ao frevo. São eles que trazemos de volta em cena, não como caricaturas, mas como homenagens vivas a um tempo que pulsa até hoje”, explicou o fundador Eduardo Araújo.
Segundo o fundador, a ideia é que a roupa ganhe vida durante o espetáculo. Os gestos e trejeitos que cada integrante coloca em cena durante a apresentação são o que transforma a dança e fazem do acessório uma composição da história, com uma estética diretamente ligada às raízes do frevo.
Para o historiador Luiz Vinícius Maciel, analista de pesquisa do Paço do Frevo, museu e centro de estudos dedicado ao ritmo localizado no Bairro do Recife, o grupo resgata personagens presentes em registros fotográficos históricos, como os de Pierre Verger, Mário de Carvalho, Benício Dias e Alexandre Berzin, que captaram cenas marcantes do carnaval nas décadas de 1940 e 1950.
“Vemos muito a figura do guarda, do policial, da mulher passista, do homem com grandes guarda-chuvas ou não, com colares de conta, vestidos listrados ou roupas beges e cáqui. Eu consigo ver muito essa relação entre os personagens dos “Guerreiros do Passo” e essas fotografias tão icônicas para contar a história do frevo”, explicou.
De acordo com o pesquisador, o frevo nasceu entre 1890 e 1910 no bairro de São José, na área Central do Recife, em meio a um contexto de intensas transformações sociais, urbanas e econômicas, além da interação com a população do Porto do Recife e a presença de outras nacionalidades.
O bairro concentrava uma população negra, trabalhadora e marginalizada, formada em grande parte por descendentes de pessoas escravizadas ou ex-escravizadas. Ali, surgiram as primeiras agremiações do carnaval, como Vassourinhas, Clube das Pás, Lenhadores e Batutas de São José.
“Dá para dizer, por exemplo, que o sapateado, muito comum nos musicais norte-americanos, também influenciou o frevo. Assim como as danças russas, os “carpados”, os saltos, muito característicos dos balés russos, que eram dançados por homens e mulheres na Rússia, junto, obviamente, de expressões culturais do Brasil. As principais ‘mães do frevo’ são as danças brasileiras, como, por exemplo, movimentações da capoeira, do maracatu de baque solto e do caboclinho, junto com expressões de fora”, contou o especialista.
Guerreiros do Passo em apresentação no Bairro do Recife
Divulgação/Eduardo Araújo
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