Vendas bilionárias de acervos musicais geram cobiça por tesouros como o catálogo de Marília Mendonça; entenda


Especialistas explicam o que significa vender um acervo musical, como funciona a negociação, o que muda para os ouvintes e apontam se os fãs também podem investir no acervo. Entenda como funciona a venda de um catálogo musical
Nos últimos dias, a possível venda do acervo musical de Marília Mendonça surpreendeu o mercado e os fãs. O g1 apurou que a negociação está avançada. Uma fonte chegou a confirmar a venda de uma parte do material, de faixas ainda inéditas da cantora.
Marília deixou um repertório vasto. Segundo o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), há 349 composições registradas em seu nome e 521 gravações em sua voz.
Em 2021, uma apuração do g1 identificou ao menos 98 músicas compostas por ela que ainda não haviam sido gravadas. Mas esse número pode ser ainda maior.
Caso o negócio seja fechado, Marília se junta a uma lista cada vez maior de artistas — ou seus herdeiros — que vendem seus acervos para gravadoras ou fundos de investimento.
David Bowie foi um dos primeiros a fazer isso. Em 1997, negociou 25 álbuns por US$ 55 milhões, em um acordo que ficou conhecido como Bowie Bonds e virou referência no setor.
Nos últimos anos, especialmente durante e após a pandemia, esse tipo de venda se popularizou. Shakira, Rod Stewart, Bruce Springsteen, Justin Bieber, Sting, Bob Dylan e Red Hot Chili Peppers estão entre os que fecharam acordos que chegam aos bilhões de reais.
Mas afinal, o que significa vender um acervo musical? Como isso funciona? Quem pode vender ou comprar? O que muda para os ouvintes? E um fã pode investir?
O g1 ouviu especialistas para explicar os bastidores desse tipo de negociação.

O que é um catálogo musical?
Como funciona a venda de catálogos?
Como se chega ao valor da oferta?
Por que os artistas vendem?
Por que os compradores investem em catálogos?
Qual o perfil dos compradores?
Tá, mas se eu, um simples fã, posso comprar se quiser?
Para os ouvintes, a negociação de catálogos muda alguma coisa?
E para o mercado musical brasileiro?
Cuidado com contratos e respeito ao artista
Catálogos musicais: como funciona a venda?
Adobe Stock/IA
O que é um catálogo musical?
Um catálogo musical é o conjunto de todas as músicas de um artista, sejam elas gravadas ou não. E ele pode incluir obras (que é a composição em si) ou fonogramas (a gravação da música, que você ouve nos álbuns, rádios ou plataformas digitais).
A venda pode envolver todo o catálogo ou partes específicas (apenas a obra, apenas o fonograma, ou somente alguns discos ou faixas) a depender do interesse do artista ou do comprador.
Como funciona a venda de catálogos?
A venda é a transferência dos direitos autorais e/ou fonográficos para o comprador (que em sua maioria, são gravadoras, editoras ou fundos de investimento).
O comprador paga um montante único (e, geralmente, milionário) para o artista, que cede os direitos autorais da obra ou fonograma. Esse valor é uma antecipação dos rendimentos gerados pelas músicas, seja pelos royalties de streaming, execuções públicas, ou aparições em publicidade, cinema ou TV.
“Quando você é titular de um fonograma, você é titular de uma obra. E você também absorve a responsabilidade de fazer aquilo girar, aquele dinheiro girar”, explica Gustavo.
Como se chega ao valor da oferta?
Estima-se que Rod Stewart tenha vendido seu catálogo por US$ 100 milhões (cerca de R$ 545 milhões). Bruce Springsteen por US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões). E Justin Bieber US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão). Especialistas citam que o de Marília está sendo negociado por R$ 300 milhões.
Para se chegar à oferta final, o catálogo passa por um processo que determina o valor econômico de um ativo, empresa ou investimento (chamado de “valuation”).
“Tem uma análise por trás, um levantamento dos números dos últimos três a cinco anos, para poder se ter uma ideia de como flutua os pagamentos mensais. E aí fazem a base”, diz Bruno Savastano, fundador da Powerhouse, empresa que faz intermediação entre artistas e fundos de investimento.
“Se for um catálogo que está numa crescente, você multiplica isso por 10, por 11, por 5…”, segue o especialista, citando variáveis que ajudam a definir o valor.
“Na análise, você já entende se o catálogo é estável, se ele tá em declínio, se ele já performou e agora está caindo, ou se está performando e subindo um pouquinho.”
Marília Mendonça morreu no auge de sua carreira, em novembro 2021
Divulgação
Por que os artistas vendem?
Normalmente a motivação é financeira. Por vezes, o artista não tem expertise para fazer a obra girar no mercado e cuidar do licenciamento para inserção em outros projetos comerciais.
“O artista sozinho está conseguindo extrair o máximo dessas obras fonogramas? Normalmente não, por isso que tem esse tipo de contrato”, aponta Gustavo Deppe, advogado especializado em direito autoral na música.
“Ele vai receber aquele dinheiro de uma vez, vai ceder seus direitos de fonograma e de obra, e vai deixar na mão de terceiros que já tem expertise para fazer esses acordos, licenciamentos, inserções”, explica o advogado.
Savastano indica que a negociação não é interessante apenas para grandes artistas (ou com catálogos chamados de legacy [legado], como é o caso do de Marília Mendonça).
“Cabe a qualquer artista em qualquer nível da carreira.” Atualmente, existem fundos musicais compradores que se interessam por diversos tipos de catálogo: dos menores aos gigantes.
“Às vezes, é um artista que precisa financiar um disco novo, uma turnê, um vídeo, o que for. Há formas de você vender esses ativos agora, nem que seja através de plataformas. Democratizou muito e é uma forma do artista independente, acima de tudo, monetizar, levantar capital para conquistar mais.”
Por que os compradores investem em catálogos?
Quem compra quer rentabilizar. Os compradores têm interesse nos catálogos por ser, de certa forma, como uma empresa que tem rendimentos mensais garantidos, já que o comprador receberá pelos direitos autorais até a obra cair em domínio público.
“Os fonogramas entram em domínio público 70 anos após a gravação do fonograma”, explica Gustavo. A liberação acontece sempre no dia 1º de janeiro após completar os 70 anos.
Quando se trata da composição, esse tempo pode durar ainda mais, já que a obra só entra em domínio público após a morte do compositor. Se forem composições conjuntas, isso acontece 70 anos após a morte do último coautor.
Por exemplo: A faixa “De quem é a Culpa”, composta por Marília Mendonça e Juliano Tchula, só entrará para domínio público 70 anos após a morte de Tchula. E, não, em 2091, ano em que se completa 70 anos da morte de Marília.
Entenda como funciona a venda de catálogos musicais
Adobe Stock
Qual o perfil dos compradores?
Existem dois perfis de compradores:
passivo: faz a compra, coloca o catálogo “na prateleira” e fica só recebendo os valores referentes aos direitos autorais de execução pública, rádios e plataformas;
ativo: que faz a gestão do catálogo. Após a compra, tenta fazer parcerias e o licenciamento da obra, encaixando as músicas em filmes, séries, peças publicitárias, projetos de marcas, entre outras ações.
Apesar de a grande maioria das negociações serem fechadas com gravadoras, editoras e fundos de investimentos, o comprador também pode ser pessoa física.
Um dos maiores exemplos disso foi Michal Jackson. Por anos, o artista foi dono de parte do catálogo dos Beatles. Michael adquiriu os direitos sobre canções da banda em 1985, por US$ 47,5 milhões.
Gustavo Deppe cita que os direitos autorais podem até ser usados como forma de pagamento para algum serviço.
“Eu como advogado, posso chegar para um artista e falar: ‘Olha, você não tem dinheiro para me pagar pelo meu serviço, mas eu posso ficar com uma porcentagem do seu fonograma no digital. É uma remuneração pelo meu trabalho’.”
Seja quem for o comprador, Bruno Savasteno alerta: “Não adianta ficar na mão de uma pessoa leiga que vai assinar contratos ruins, vai assinar liberações ruins, e não vai conseguir fazer um licenciamento correto. A conta não vai fechar, vai perder dinheiro.”
Tá, mas se eu, um simples fã, posso comprar se quiser?
Fãs podem investir em catálogos musicais através de plataformas de fundos de investimento
Adobe Stock/IA
Atualmente isso é possível. Existem plataformas que vendem pacotes com diversos ativos, e esse mercado é uma crescente. Tanto que grandes gravadoras já estão discutindo o mercado de “superfãs”.
“‘Sou muito fã do artista X e gostaria de ter um pedaço disso. Gosto tanto, quero contribuir, e quero ser parte disso’. E aí com isso você tem direto de acesso a shows em primeira mão, esse tipo de coisa. Tem essa troca direta entre o artista e o fã. Isso é uma categoria que está se moldando e acelerando muito rapidamente.”
“Acho que futuramente os compradores desses catálogos, acima de tudo, vão ser os fãs”, analisa Bruno.
Para os ouvintes, a negociação de catálogos muda alguma coisa?
“Nada. Não muda, porque geralmente esse também é um processo confidencial. Às vezes o artista vendeu e ninguém nem sabe”, resume Bruno.
E para o mercado musical brasileiro?
Homem sentado com fone de ouvido.
Unsplash
Segundo Bruno, a venda de catálogos musicais brasileiros para fundos internacionais pode colocar a cultura nacional em mercados ainda não trabalhados.
“A música brasileira não viaja muito longe por conta da barreira linguística. Então, a gente tem uma limitação lá fora. Obviamente, se falar de Bossa Nova, da velha guarda, isso é outra história. Mas se você for falar de Marilia Mendonça, por exemplo, o alcance dela é Portugal, é talvez um pouco de Estados Unidos. São coisas muito pontuais.”
Para ele, as negociações internacionais abrem portais globais, ajudando a música nacional a se expandir e a se difundir.
Cuidado com contratos e respeito ao artista
Seja para quem compra, seja para quem vende, Gustavo Deppe alerta sobre a importância de definir regras em contratos. Em especial, para artistas em começo de carreira, que precisam definir, ponto a ponto, as divisões sobre o direito da obra e do fonograma.
“Quando a gente fala de vendas catálogo, esse trabalho é um trabalho documental muito pesado, porque você tem que ir atrás de contrato, tem que ir atrás de e-mail se não tiver contrato… Tem que ir atrás de comprovações dessa titularidade das gravações e das obras.”
Qualquer falha no processo, pode levar a brigas na justiça e até a retirada de músicas do ar, chamadas de takedown.
Gustavo ainda faz um alerta sobre o respeito ao legado dos artistas, em caso de licitações póstumas.
“A gente tem que pensar também em quem talvez teria sensibilidade para fazer uma liberação de uso de obra. De repente, às vezes, aquele artista em vida não gostava de tal gênero musical, não gostava de tais artistas, e quem sucede às vezes não liga para isso e faz liberações.”
“Nesse caso, é o direito moral do artista, que é herdado pela família, e tem o poder de dizer sim ou não.”
David Bowie foi um dos pioneiros na venda de catálogos musicais
REUTERS/Leonhard Foeger/File Photo

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