Como ciência e ancestralidade se aliam na pesquisa antropológica sobre os ribeirinhos da Amazônia


Depoimento de um ribeirinho e mestrando em Antropologia mostra como o olhar do pesquisador e o conhecimento tradicional podem se unir na busca de soluções para os problemas ambientais da Amazônia Ribeirinhos saem de povoados para estudar e voltam pesquisando sobre a própria realidade.
Arney Barreto/TV Tapajós
Meu nome é Marcos. Sou ribeirinho, negro, gay, filho, neto e bisneto de pescadores marajoaras. Meu pai não sabia ler e nem escrever. Minha mãe também era pescadora, e frequentou a escola já adulta, quando nós, os filhos, já estávamos crescidos. Sou, portanto, um afro-ribeirinho-amazônida.
Em janeiro deste ano, comecei a fazer minha pesquisa de campo para o Mestrado em Antropologia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Decidi pesquisar moradia ribeirinha em um bairro de área de várzea do município de Ponta de Pedras, no Arquipélago do Marajó (Pará). Sendo eu mesmo um morador de uma casa ribeirinha numa área alagada, sou, como bem sinalizou o cientista social Dulcídio Cossa, um “estranho não estranho”.
Ciência e conhecimento tradicional
Em meu trabalho de campo, minhas memórias se misturam com o que percebo como pesquisador, enquanto produzo uma etnografia. O olhar do antropólogo em formação tem que ser acionado todo o tempo, para perceber os detalhes que o olhar do eu-nativo poderia deixar passar por conta da familiaridade e da intimidade.
Precisei praticar o estranhamento de forma regular, e busco ver de forma diferente as avenidas, ruas, travessas, pontes (o que muitos chamam palafitas, aqui chamamos de pontes) e realidades outras desse bairro que a princípio me pareciam tão familiares.
Esse lugar e esse modo de viver são únicos (ou quase únicos). Eles nascem da união de diversos modos de viver que as diásporas trouxeram, seja dos povos transplantados, vindos de África escravizados, ou dos povos originários, que, apesar de devastados pelos invasores, deixaram suas marcas.
Eu não me dava conta do patrimônio identitário que amealhamos, e como ele se encontra ameaçado pelas mudanças climáticas, pela especulação sobre o nosso território, pelo avanço do grande capital. Nosso território é tomado como fonte de turismo, de recursos, de produtos, de açaí, mas tudo isso sem a nossa participação e direcionamento. Somos ignorados, apesar de determos conhecimentos e saberes sobre nosso patrimônio que cultivamos de geração em geração.
Entre problemas, soluções e lembranças
Algumas situações vêm se apresentando com força em minha pesquisa, entre elas a destruição do nosso modo de viver.
Nossa prática de cuidados com a vida e com o território está encharcada pela ausência de saneamento básico e pela presença de aterro sanitário que, ao longo dos anos, polui os igarapés a ponto de hoje não serem mais usados como fonte de renda, pesca ou lazer. Sabemos que a pesca está a cada dia se distanciando mais das ribeiras próximas e avançando para áreas longínquas e perigosas, que exigem maior esforço dos pescadores e investimentos em tecnologias, antes não necessárias.
Mas é interessante constatar que, apesar das mudanças de cenário, das ameaças, das perdas, as famílias não deixaram de pescar e tampouco abandonaram a extração de açaí. Afinal, fomos criados dentro da tradição de pesca e coleta, como mudar abruptamente?
Lembro que, desde criança, meu pai me ensinou a respeito dos ciclos das marés, dos períodos de safra e entressafra do açaí, bem como do manejo das touceiras nativas. Aprendi ainda qual o período de pesca e fechamento das possibilidades da pesca. Lidar com o período de inverno com zelo e cuidado são conhecimentos indispensáveis para os ribeirinhos, pois desse cuidado vem nosso sustento, e a farinha-nossa-de-cada-dia não pode faltar.
Meus pais me ensinaram via oralidade a respeitar a mata e os horários do rio, e a deixar em paz quem estava em paz. Foi assim que eu e a minha geração aprendemos com nossos ancestrais — as gerações dos pais, avôs e bisavôs — a importância dos ciclos da natureza em nossas vidas. Como desprezar esses conhecimentos?
Eu poderia escrever muitas folhas sobre nossas formas de viver, entretanto minha palavra parece não convencer os não ribeirinhos a nos ver com seriedade.
Ribeirinho do Marajó que trabalha como carroceiro é aprovado no vestibular
Fim do mundo
Estamos vivendo a nosso modo o fim do mundo que chamamos de nosso, da vida que chamamos de nossa, do modo de viver que nossos ancestrais construíram. Mas proponho-me a pensar que, assim como vivemos a nosso modo o fim do mundo, reinventaremos a nosso modo (único também) as nossas próprias ideias de adiamento desse fim de mundo. Resistiremos bravamente para manter nosso território.
Pois, como bem nos lembra Ailton Krenak: “Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos”.
E esse “todos” somos nós, ribeirinhos e não ribeirinhos, moradores de áreas de várzea ou da terra firme, das pequenas cidades amazônicas, ou das grandes cidades. Quando a nossa existência perde os seus sentidos originários, vamos nos tornando rapidamente, como há tanto tempo disse Marx, reserva de mão de obra, muitas vezes barata, servindo de combustível para a (in)lógica capitalista.
Deixando a porta aberta ao diálogo
Ao se referir às várzeas habitadas ou áreas ribeirinhas, a antropóloga Lígia Simonian afirma que, nessas áreas, “os moradores convivem com a tradicionalidade e a contemporaneidade”. Só que a contemporaneidade parece decretar a morte de nosso território/lugar.
É preciso respeitar e legitimar o modo de viver ribeirinho em áreas de várzea, seja no Marajó ou em qualquer outro lugar da Amazônia. Os rios, igarapés, açaizais precisam continuar tendo a força que sempre tiveram conosco. São seres que merecem respeito, admiração, envolvimento e resguardo. Seria interessante compartilhar nossos conhecimentos, uma vez que aprendemos a viver com a floresta nesse lugar que passou a ser nosso.
Se precificarmos os custos do diálogo, vemos que eles são baixos, entretanto requerem mudanças nos olhares sobre nós, abandonando o eurocentrismo que mantém os colonialismos.
Estamos sempre dispostos a compartilhar conhecimentos, desde que sem assimetrias. Ao nosso modo, preservamos a mata, guardamos saberes de cura, de proteção, de frutificação das plantas, de formas e maneiras de pescar. Quem sabe, juntos e em diálogo com os conhecimentos tradicionais, podemos vencer a crise climática?
Marcos Samuel Costa da Conceição recebe financiamento da CNPq (bolsa de mestrado). Ele é afiliado à UFPA como discente.
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