
Grupo da Ilha do Combu encontrou um meio de amenizar os impactos do lixo acumulado no rio Guamá utilizando folhas da árvore de cacau, realizando um processo todo manual. Mulheres da Ilha do Combu produzem embalagens biodegradáveis com material da floresta amazônica
Ana Clarisse
A retirada voluntária de resíduos plásticos acumulados às margens do rio Guamá tem se tornado parte do cotidiano de moradores da Ilha do Combu, localizada a 1,5 km de Belém. Diante de um crescente cenário de poluição, um grupo de mulheres extrativistas decidiu agir: transformar folhas de cacau em embalagens biodegradáveis, aliando conhecimento técnico à sabedoria popular.
O simples hábito dos ribeirinhos de molhar os pés na beira do rio foi substituído pela convivência diária com sacolas, garrafas e outros resíduos plásticos. Segundo a Secretaria Municipal de Zeladoria e Conservação Urbana (Sezel), cerca de 150 mil toneladas de lixo foram retirados dos canais e rios da capital paraense, entre os meses de janeiro e abril de 2025.
Parte desse lixo segue o curso natural do rio e se acumula em comunidades que vivem na Ilha do Combu, entre elas, a Associação de Mulheres Extrativistas da Ilha do Combu (AME), composta por cerca de 15 mulheres que nasceram e se criaram presenciando as mudanças do território amazônico.
“A gente quase não sai daqui, então precisávamos encontrar por aqui mesmo algo para mudar esse aumento de lixo e as consequências que vêm junto”, diz Dayane Sarmanho, de 30 anos, moradora da ilha e integrante da associação desde o início, há seis anos.
Dayane e as demais mulheres da AME tiram o sustento exclusivamente da comercialização de produtos feitos com matérias-primas da floresta, como a andiroba, planta nativa da Amazônia da qual é extraído um óleo utilizado para fins medicinais.
Sabonetes, óleos, hidratantes e outros itens naturais são produzidos de forma artesanal e atraem visitantes interessados nos cosméticos sustentáveis e saberes tradicionais que fazem parte da produção.
Solução que vem da floresta 🌳
Extrativistas colhem as folhas de forma manual para a produção da embalagem
Carolina Mota
A produção das embalagens feitas com folhas de cacau tornou-se parte do trabalho das mulheres extrativistas.
🍃 O processo começa ainda na floresta, com a colheita manual das folhas direto das árvores. Mas não é qualquer folha que serve: as mais maduras, que apresentam uma coloração verde-escura, costumam ser rígidas e quebradiças.
Já as folhas muito novas, em tons um pouco mais claros, são frágeis demais para o manuseio. A escolha é feita no olho e no toque, com a experiência de quem conhece a matéria-prima utilizada.
🪵 Depois da colheita, as folhas seguem para uma etapa chamada de fervura. Em um latão com água aquecida no fogo a lenha, é adicionada soda cáustica. As folhas são mergulhadas nessa mistura por alguns minutos.
“A gente sabe que está no ponto quando a folha vai perdendo a coloração verde e fica mais puxada pro marrom”, explica Rosineide Trindade, uma das associadas da AME.
⛅ Após a fervura, cada folha é cuidadosamente lavada. Primeiro com água sanitária, depois em água corrente, para remover os resíduos químicos.
Em seguida, são penduradas à sombra em varais e deixadas para secar naturalmente. O ponto certo é identificado quando elas começam a enrolar sozinhas, sinal de que estão prontas para a próxima etapa.
🌳 Já secas, as folhas passam por um último tratamento. O ferro de passar roupa é usado para deixá-las com uma textura mais lisa e uniforme, prontas para serem transformadas em embalagens sustentáveis.
Apesar de ser um trabalho delicado, demorado e feito à mão, a escolha por usar folhas de cacau carrega um propósito para além da comercialização.
“Poderíamos comprar sacolas prontas, seria bem mais fácil. Porém, precisamos cuidar de onde a gente vive. A floresta cuida da gente, então precisamos retribuir isso”, afirma Rosineide.
A professora Sury Monteiro, Oceanógrafa e diretora da Faculdade de Oceanografia da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca a importância ambiental desse tipo de prática. Para ela, iniciativas como a das mulheres da AME mostram como os saberes locais podem oferecer respostas acessíveis à crise ambiental.
“Esse processo artesanal é um exemplo claro de inovação a partir do conhecimento tradicional. Ele valoriza o que é local e mostra que é possível gerar renda cuidando do meio ambiente”, afirma a especialista.
Muito além do chocolate 🍫
As folhas do cacaueiro, por serem longas e firmes, são excelentes para servirem de embalagem
Ana Clarisse
O estado do Pará é o maior produtor de cacau do país, segundo a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), e é responsável por cerca de 51% de toda a produção nacional.
Uma parte da produção do estado está situada na Ilha do Combu, com árvores nativas em solos férteis de várzeas distribuídas ao longo do rio, conforme diz o relatório da Ceplac. Do cultivo, deriva o chocolate, que tem grande força no Pará.
Porém, os nativos deram outra utilidade para a árvore. As folhas do cacaueiro, por serem longas e com estruturas firmes, poderiam facilmente embalar produtos pequenos.
Há cerca de três anos, as mulheres da AME adotam um processo mais técnico para a fabricação das embalagens.
Segundo Rosineide, o trabalho realizado pela associação passou por alguns aperfeiçoamentos, já que, segundo ela, o processo precisava de detalhes técnicos que elas não possuíam.
“Conseguimos advogado para nos ajudar em casos de necessidade jurídica. Temos acesso a um químico que nos orienta sobre o manuseio e descarte dos produtos utilizados. Todos de forma voluntária, que chegam aqui, ficam admirados com a iniciativa e passam a querer contribuir com a melhoria dela”, afirma.
De acordo com a professora da UFPA, esse tipo de incentivo é essencial para a valorização de iniciativas como a da AME. Segundo Sury, quando práticas sustentáveis ganham escala e apoio, tornam-se capazes de gerar pressão por políticas públicas e regulamentações.
“Essas práticas criam uma pressão para a geração de políticas públicas, de regulamentação que retorna para apoiar a prática com financiamento, com pesquisa, com o aprimoramento. Mas precisamos também consumir e valorizar essas iniciativas pra que elas ganhem corpo e robustez. Não dá para esperar que pessoas de fora valorizem os nossos produtos, técnicas e estilos de vida se nós mesmos não valorizamos”, explica.
Descarte irregular de lixo e soluções
Moradores e voluntários fazem a coleta de lixo às margens do rio Guamá na Ilha do Combu
Tarso Sarraf
O crescimento do turismo na Ilha do Combu tem chamado atenção não apenas pelo aumento expressivo de visitantes e empreendimentos, como também pelos impactos socioambientais.
Segundo o Boletim de Inteligência de Mercado 2023 do Sebrae Pará, o número de estabelecimentos turísticos na ilha saltou de três, no ano 2000, para 60 em 2023.
Com a proximidade da COP30, a expectativa é de que mais de 40 mil visitantes passem pela capital paraense, ampliando ainda mais o fluxo turístico nas ilhas vizinhas.
Apesar do potencial econômico, esse processo tem desencadeado o chamado turismo predatório, caracterizado pelo descarte inadequado de resíduos, desmatamento e pressões sobre os recursos naturais.
Cenário este que Dayane tem presenciado de perto. Segundo a associada, o que antes era repleto de verde e silêncio, agora dá espaço para construções e volume alto de som, por exemplo.
“Isso aqui tudo era verde, agora a gente vê que estão construindo casas, hostels e outras moradias. A gente também precisa toda semana retirar lixo que se acumula aqui na beira, lixo esse que sequer é produzido por nós”, diz.
Na avaliação da professora Sury o impacto do lixo plástico nos rios amazônicos é alarmante e afeta também a saúde da população.
Estudos recentes realizados na região apontam a presença de microplásticos não apenas na água dos rios, mas também nos sedimentos, nas margens, em peixes, aves e até em organismos microscópicos.
Ela explica que os humanos acabam consumindo indiretamente esses microplásticos quando ingerem a carne de pescados e de outros elementos afetados por tais partículas.
“A gente consome muito pescado na região e acabamos consumindo indiretamente esse tipo de poluição. É uma questão de saúde pública que ainda é pouco compreendida”, alerta.
De acordo com a especialista Sury, as soluções para a crise ambiental podem ser buscadas dentro da própria floresta devido esse contato direto que as comunidades tradicionais possuem com o meio. Ela destaca a importância de ouvir e aprender com os saberes tradicionais das comunidades extrativistas, que historicamente cuidam do território de forma sustentável.
“É imprescindível, necessário e urgente que a sociedade se conecte a esses conhecimentos e análises ancestrais do povo da floresta. Antes de haver centros urbanos, essas comunidades já existiam aqui, cuidando desse ambiente, vivendo em harmonia, retirando consumos sem causar grandes impactos”, explica.
Ciência e ancestralidade
a especialista em oceanografia Sury Monteiro explica os problemas causados pelos microplásticos
Ana Clarisse
Segundo Sury, a decomposição das sacolas plásticas é um dos pontos mais preocupantes quando se fala em sacolas. Os materiais tradicionais podem levar até 400 anos para desaparecer, mesmo as versões biodegradáveis, feitas a partir da cana-de-açúcar.
O material se transforma em microfragmentos que continuam causando danos ao ecossistema. São resíduos que não desaparecem completamente e se espalham pelas águas, contaminando a base da cadeia alimentar, de acordo com a especialista.
Para a professora, a poluição está diretamente relacionada à ausência de um sistema eficaz de gerenciamento de resíduos. Segundo Sury, estima-se que 90% do lixo produzido seja descartado de forma inadequada, mesmo em áreas urbanas com coleta regular. A falta de conhecimento acerca do assunto agrava o problema e reforça a urgência de mudanças estruturais e culturais.
A iniciativa da AME do Combu é citada como um exemplo de resposta dos moradores aos desafios ambientais da Amazônia que eles enfrentam diariamente. Para Sury, alternativas como o uso de folhas de cacau no lugar do plástico ganham força por respeitarem os limites do ecossistema e aproveitarem matérias-primas locais de forma inteligente.
“Se eu tenho um tipo de bem natural que posso utilizar sem causar desequilíbrio naquele ambiente, por que não usar?”, questiona.
Ela reforça que práticas sustentáveis precisam ser adaptadas à realidade de cada região, especialmente na Amazônia.
“De repente, aqui no Pará, podemos ter uma grande disponibilidade de caroço de açaí que pode ser usado para outro fim, mas essa mesma técnica não poderia ser usada em outra região que não tenha essa mesma produção do fruto, para que não haja um desmatamento sem sentido da matéria-prima”, reforça.
Segundo Sury, o conhecimento tradicional e a ciência se encontram nesse momento: na construção de soluções locais com impacto social a partir do olhar e da vivência do ribeirinho.
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