Preta Gil quase repetiu de ano por causa de preconceito linguístico ao se mudar da Bahia para Rio de Janeiro; entenda


Preta Gil falou sobre alfabetização na Bahia durante participação no programa do Porchat
A cantora Preta Gil, que morreu no domingo (20) após uma longa batalha contra o câncer, quase repetiu a alfabetização devido ao preconceito linguístico. A carioca aprendeu a ler e escrever em Salvador e, quando se mudou para o Rio de Janeiro, foi alvo de piadas devido a forma como falava as letras.
A artista comentou o assunto durante um episódio do programa “Que História É Essa Porchat”, exibido em 2020. Preta contou que apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, se mudou para Salvador com apenas seis meses de vida. Depois, aos quatro anos e meio, voltou para a capital carioca com a família.
A mudança ocorreu no meio de 1979, quando Preta estava no processo de alfabetização. Ao chegar na escola nova, a professora pediu que ela falasse o alfabeto para toda turma. Como tinha aprendido as letras em Salvador, Preta se animou para declamá-las, mas foi surpreendida pelos risos dos colegas.
“Todo mundo riu da minha cara e a professora disse: ‘você está falando errado, isso é um dialeto? Uma musiquinha do Olodum?’. Ela disse que falaria com minha mãe para eu repetir de ano”, relembrou.
O preconceito linguístico da professora e dos colegas se deu pela fonética das letras. Em Salvador e em outras cidades do Nordeste, o nome de algumas letras costumam ser ensinado de forma diferente para as crianças, fato que inclusive foi cantado por Luiz Gonzaga na música “ABC do Sertão”.
A letra “M”, por exemplo, é chamada de “mê”, e não de “eme”, como em outras regiões do país. (Veja abaixo)
Nome das letras
Segundo a doutora em linguística e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Amanda Chofard, essa diferença no modo de pronunciar as letras é uma característica do Nordeste do Brasil.
“A forma como é ensinado em Salvador se aproxima mais do som que a letra produz. Esse é um método de alfabetização, um método fônico, que por muito tempo foi utilizado e ainda é”, explicou.
Segundo a professora, alguns educadores que defendem essa forma de aprendizado justificam que pronunciar “mê”, “nê” e “rê”, por exemplo, facilita o aprendizado da leitura e da escrita para as crianças, já que o som da letra fica mais próximo do som que ela reproduz nos nomes.
Apesar disso, não há jeito certo ou errado se pronunciar o alfabeto. O Acordo Ortográfico de 1990, também conhecido como Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aceita as duas formas de nomear as letras.
Para a professora Amanda Chofard, o preconceito linguístico normalmente está relacionado a questões sociais como classe, raça e escolaridade. Neste caso, o preconceito se deu devido ao fato de Preta ter se mudado do Nordeste para o Sudeste.
“É uma atitude que revela um preconceito linguístico e vemos muitas dessas atitudes sendo reforçadas no dia a dia. Nesse caso específico, está ligado ao fato dela ter se mudado da Bahia para o Rio de Janeiro. A ideia é que ela ‘aprendeu errado’ apenas porque essa não era a forma falada na cidade”, disse.
Preta Gil durante participação no programa “Que História É Essa Porchat”
GNT
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No caso de Preta, as piadas não se alongaram. Após sofrer o preconceito na sala de aula, a mãe da garota, Sandra Gadelha, se recusou a deixá-la repetir de ano. “Minha mãe disse na escola: ‘olhe só, Preta não vai repetir de ano. Preta vai falar do jeito que é’. Depois, disse para mim: ‘volte na escola e dê o seu showzinho'”, contou a artista.
No dia seguinte, ao encontrar os colegas que diziam que ela “falava esquisito”, Preta subiu em um banco e pronunciou o “alfabeto nordestino” com uma performance.
“Considero esse dia minha estreia, foi ali que comecei”, disse.
Para a professora da Ufba, Amanda Chofard, a atitude da artista ainda criança foi uma forma de barrar o preconceito linguístico.
“Foi uma forma de mostrar para os outros que a variação linguística é muito importante e merece ser respeita. Nessa fala da Preta, podemos ver que desde criança ela se colocou, valorizou o seu lugar de fala”, disse.
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