
Mergulho profundo na eternidade e intensidade de Nana Caymmi, show é grito de amor da sobrinha para a cantora morta em 1º de maio, aos 84 anos. Alice Caymmi canta o repertório de Nana Caymmi (1941 – 2025) no show ‘Para minha tia Nana’, atração do clube Manouche, no Rio de Janeiro
Rodrigo Goffredo
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: Para minha tia Nana
Artista: Alice Caymmi
Data e local: 20 de junho de 2025 no clube Manouche (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2
♬ Na árvore genealógica da família Caymmi, Alice Caymmi é sobrinha de Nana Caymmi (29 de abril de 1941 – 1º de maio de 2025). Na dinastia da música brasileira, Alice é a filha legítima de Nana. A única herdeira com autoridade vocal e emocional para perpetuar o legado dessa grande cantora carioca que partiu para a eternidade há quase dois meses, aos 84 anos, deixando discografia coesa e coerente com a ideologia que professou em mais de 60 anos de carreira.
Foi Nana quem pariu Alice na música brasileira, há 24 anos, ao convidar a sobrinha então adolescente para cantar com ela Seus olhos – composição de Juliana Caymmi – no álbum Desejo (2001). Por isso mesmo, faz todo sentido a homenagem a Nana prestada por Alice, à flor da pele, no show Para minha tia Nana, concorrida atração do clube Manouche (como as três sessões desta semana tiveram os ingressos rapidamente esgotados, uma quarta já foi marcada para 5 de julho).
Cabe ressaltar que o show Para minha tia Nana vinha sendo feito por Alice desde 2018, com Nana viva, mas adquiriu aura especial após a saída de cena da homenageada, o que conferiu ao show um involuntário caráter de tributo póstumo, sem qualquer ranço oportunista.
O que se viu no palco do Manouche na noite de ontem, 20 de junho, data da segunda das três apresentações, foi uma cantora emocionada, com a alma e a voz (grave, densa e potente) entregues a um repertório intenso embebido em dores de amores e cantado com o toque do pianista Francisco Eiras.
Exceção no rosário de lágrimas foi Acalanto, música que marcou o nascimento de Nana como cantora, em 1960, em dueto com o pai, Dorival Caymmi (1914 – 2008), avô de Alice e autor da canção de ninar composta em 1942, quando Nana tinha um ano, mas lançada em disco somente em 1957. Justiça seja feita, Alice cantou Acalanto com profunda emoção, refinada emissão vocal e ternura antiga em registro que nada ficou a dever às abordagens da tia e do avô.
E por falar em ternura antiga, o roteiro do show incluiu um dos maiores sucessos de Dolores Duran (1930 – 1959), A noite do meu bem (1959), lembrança lírica do disco dedicado por Nana em 1994 ao repertório de Dolores.
Alice Caymmi no palco do clube Manouche na sessão de ontem, 20 de junho, do show que voltará em 5 de julho
Rodrigo Goffredo
Alice Caymmi honrou Nana do início ao fim. Em músicas como Derradeira primavera (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962) e Sem você (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958), esta abordada por Nana pela primeira vez aos 23 anos no álbum Caymmi visita Tom (1964), Alice até se ombreou com a tia, reiterando a vocação para dar voz ao cancioneiro da MPB.
Em contrapartida, a intérprete elevou demasiadamente os tons no canto de Tarde triste (1956), ignorando a interiorização do sofrimento e da nostalgia melancólica que angustiam o solitário eu-lírico da canção de Maysa (1936 – 1977) resgatada por Nana em gravação feita para a novela O clone (TV Globo, 2001 / 2002). A própria Alice lançou em 2014 uma gravação precisa de Tarde triste, feita em duo com Lucas Vasconcellos nos tons adequados.
Aberto com Resposta ao tempo (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 1998), bolero que deu a Nana um sucesso massivo atípico na trajetória da artista, o roteiro evidenciou a alta qualidade do repertório da tia de Alice.
Mais do que voz, uma cantora precisa ter alma, coração e alta carga emocional para dar conta de músicas como Atrás da porta (Francis Hime e Chico Buarque, 1972), Adeus (Dorival Caymmi, 1948) – tristonho samba-canção gravado por Nana no alvorecer da carreira, em 1960, em single de 78 rotações – e o bolero Se queres saber (Peter Pan, 1947), sucesso da cantora Emilinha Borba (1923 – 2005) que Nana reavivou em 1977 no mesmo álbum em que apresentou Meu menino, parceria do irmão Danilo Caymmi com a poeta e letrista Ana Terra.
Na sessão de ontem, entre histórias sobre a tia Nana (“Ela amava xingando e abraçava com raiva”), Alice Caymmi confirmou que tem tudo isso, além de humor finamente irônico. Por estar cantando “tragédias”, como ironizou, a cantora entremeou os dramas das canções com os risos provocados com os causos contados sobre Nana e com brincadeiras com o pianista, além de tiradas de sarro com ela própria. Foram os suaves venenos do show.
Como se estivesse no colo da tia, Alice amaciou o tom do bolero Sabe de mim (Sueli Costa, 1979) – música que Nana trouxe à tona em 1993 em gravação feita para álbum temático intitulado justamente Bolero – e de Mentiras (João Donato e Lysias Ênio, 1973).
Antes de cantar Beijo partido (Toninho Horta, 1975), Alice deu voz a duas músicas em inglês dos repertórios das cantoras Erykah Badu e Amy Winehouse (1983 – 2011), Out of my mind, just in time (2010) e Love is a loosing game (2006), ambas dentro do espírito denso do repertório de Nana (a desiludida balada de Amy estava no roteiro desde as primeiras apresentações em 2018), mas ainda assim corpos estranhos no roteiro de show que atingiu um dos ápices com o canto de Cais (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972).
Nesse número, o pianista Francisco Eiras emulou o toque de Wagner Tiso no arranjo referencial da canção lançada por Milton Nascimento no álbum Clube da Esquina (1972). Aliás, Alice encerrou o show com música desse disco, Clube da Esquina nº 2 (Milton Nascimento, Lô Borges e Marcio Borges, 1972), cuja letra foi apresentada por Nana em álbum de 1979.
No bis, aberto com o bolero Suave veneno (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 1999), Alice se emocionou ao cantar Não se esqueça de mim (1977). Com a partida de Nana, a canção de amor de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (1941 – 2022) soou como um apelo transcendental de Alice Caymmi à tia que já habita outra dimensão.
Em essência, o show Para minha tia Nana é um grito de amor de uma sobrinha parida pela tia. Um momento luminoso de Alice Caymmi na eternidade e na intensidade de Nana Caymmi.
Alice Caymmi faz o show ‘Para minha tia Nana’ no clube Manouche com o toque do pianista Francisco Eiras
Rodrigo Goffredo
♪ Eis o roteiro seguido em 20 de junho de 2025 por Alice Caymmi com o pianista Francisco Eiras na apresentação do show Para minha tia Nana no clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ):
1. Resposta ao tempo (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 1998)
2. Acalanto (Dorival Caymmi, 1957)
3. A noite do meu bem (Dolores Duran, 1959)
4. Tarde triste (Maysa, 1956)
5. Atrás da porta (Francis Hime e Chico Buarque, 1972)
6. Adeus (Dorival Caymmi, 1948)
7. Derradeira primavera (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962)
8. Sabe de mim (Sueli Costa, 1979)
9. Mentiras (João Donato e Lysias Ênio, 1973)
10. Sem você (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958)
11. Se queres saber (Peter Pan, 1947)
12. Meu menino (Danilo Caymmi e Ana Terra, 1977)
13. Out of my mind, just in time (Erykah Baduh, Georgia Anne Muldrow e Poyser, 2010)
14. Love is a losing game (Amy Winehouse, 2006)
15. Beijo partido (Toninho Horta, 1975)
16. Cais (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972)
17. Clube da esquina nº 2 (Milton Nascimento, Lô Borges e Marcio Borges, 1972)
Bis:
18. Suave veneno (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 1999)
19. Não se esqueça de mim (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1977)