Casais no divã: como funciona a coterapia, que tem uma dupla de terapeutas e ganha espaço até entre os não monogâmicos


Coterapia: benefícios e desafios do trabalho em dupla na terapia conjugal
A terapia de casais tradicional, com apenas um terapeuta à frente das sessões (muitas vezes, visto como um juiz pelos pacientes), tem dado espaço também para a coterapia. Nesse modelo, dois profissionais conduzem juntos as sessões, que têm atraído até os não monogâmicos.
💡 Umas das vantagens, segundo os adeptos, é que a chance de o terapeuta “comprar a versão” de uma das partes do conflito na relação conjugal é reduzida, já que, com a análise de duas pessoas, a escuta fica mais ampla, equilibrada e profunda.
🔎 No Conselho Federal de Psicologia (CFP) não há, por ora, regulamentação sobre o tema.
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Especializado em atender casais não monogâmicos, Gabriel Coelho Mendonça, de 45 anos, que se identifica como uma pessoa não binária, faz atendimentos ao lado de Poliana Queiroz Borges, de 47. Há sete anos, eles vivem uma relação não monogâmica e, desde o ano passado, trabalham juntos com a coterapia.
Eventualmente, eu percebia no meu consultório uma sensação de uma cliente mulher ter um medo ou uma resistência maior ao trabalho por antecipar que eu pudesse me aliar ao marido, por ter uma socialização masculina.
As amigas e terapeutas Marlene Rodrigues da Silva Navarro e Eliana Picolo Stela também atuam em dupla — mesmo morando em estados diferentes. Os atendimentos acontecem de forma on-line.
Para dar certo, avaliam todos, o essencial é ter sintonia entre os profissionais, que podem ser até de linhas terapêuticas diferentes (como a psicanálise e a abordagem humanista). A presença de mais uma pessoa na conversa ainda serve como modelo de parceria e diálogo para os pacientes.
O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, desaconselhava o tratamento de casais juntos pelo mesmo psicanalista. Ele acreditava que analisar pessoas ligadas por vínculos íntimos, como marido e mulher, poderia comprometer a neutralidade da análise e gerar conflitos de lealdade.
Contudo, com o passar dos anos, foi-se compreendendo que o indivíduo é constituído a partir das relações humanas. Isto é, o desenvolvimento psíquico, a formação da identidade e as emoções são profundamente influenciados por interações sociais. Por isso, em alguns casos, a terapia com mais de um paciente se faz necessária (leia mais abaixo).
Especializados em não monogâmicos
Gabriel e Poliana namoram há sete anos e atendem em coterapia desde o ano passado.
Arquivo pessoal
Apesar de cada um ter seu próprio consultório em Goiânia, Gabriel e Poliana fazem atendimentos pela internet para pacientes espalhados por todo o país — tanto casais quanto indivíduos em outros tipos de relação.
Para eles, o atendimento por dois terapeutas oferece perspectivas complementares e facilita a mediação de conflitos conjugais.
Cada um carrega uma bagagem cultural e social diferente, possibilitando uma troca mais rica com os pacientes. Também existe uma “interseccionalidade de vivências”, já que “Gabriel é socializado como um homem branco, e eu, como uma mulher negra”, observa Poliana.
Terapeuta junguiana, Poliana é doutora em Literaturas e Estudos Culturais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e DJ nas horas vagas, além de ser mãe de três filhos. Ela também passou pela experiência de ter um casamento de 20 anos antes de adotar a não monogamia.
Gabriel atende a partir de outra abordagem terapêutica: o construcionismo social. Ele também nutre amor pelas artes cênicas e circenses, atuando como um trapezista e palhaço, além do passado como massagista tântrico.
🔎 O construcionismo social é uma abordagem que entende que identidades, emoções e comportamentos são construídos socialmente, ou seja, nas interações com outras pessoas e com a cultura em que estamos inseridos.
Segundo Gabriel, a coterapia ainda evita que o terapeuta faça alianças com um dos pacientes em detrimento do outro, distanciando a imagem do psicólogo da de um árbitro.
“Provavelmente vai ter uma disputa no setting [jogo] terapêutico. Esse casal está ali em conflito de alguma maneira, e a disputa é uma dinâmica muito recorrente em situação de conflito, ainda mais numa sociedade como a nossa, que estimula muito a competição. O capitalismo é sobre isso principalmente”, afirma Gabriel.
Outro cenário possível na coterapia é que um dos profissionais pode se aliar a uma das partes por um motivo terapêutico – como para destacar a voz de alguém que não está sendo ouvida. Isto é, a prática permite que um terapeuta assuma uma postura mais ativa na intervenção enquanto o outro mantém uma distância clínica ou reflexiva.
“A coterapia passou a ser uma ferramenta importantíssima para terapia de casal por dar essa possibilidade de movimentação no setting terapêutico para os terapeutas em cena. Um terapeuta sozinho tem mais limites no jogo terapêutico”, afirma Gabriel.
Apesar dos benefícios, o casal reconhece que o alto custo do serviço, no geral, pode ser um obstáculo para a propagação dessa modalidade. “A própria terapia em si ainda é um recurso que é muito elitizado. Não é uma coisa de fácil acesso. Então, imagine a coterapia. Poderia ser mais democratizada”, pontua Poliana.
Pela experiência deles, também há diferenças no modo como formatos variados de relacionamento chegam à terapia conjugal.
Os casais não monogâmicos, no geral, estão mais abertos ao diálogo e a procurar a terapia conjugal mais cedo em comparação com os monogâmicos, que tendem a procurar o atendimento psicológico como última esperança e recurso para salvar o casamento.
“As conjugalidades não monogâmicas me parecem mais dispostas a investir no relacionamento quando ele apresenta problemas. As conjugalidades monogâmicas tendem a procurar a terapia um pouco mais tarde. Ainda existe uma ideia monogâmica de fracasso na relação”, afirma Gabriel.
Gabriel e Poliana
Arquivo pessoal
Sintonia
Separadas por quase mil quilômetros de distância, as psicólogas Marlene Rodrigues da Silva Navarro, de 52 anos, e Eliana Picolo Stela, de 65, atendem casais em coterapia há dois anos, mesmo sem nunca terem se encontrado presencialmente.
Elas se conheceram virtualmente e se tornaram amigas durante o curso de Formação em Terapia de Casal e Família no Instituto de Terapia Familiar de Minas Gerais (ITF-MG), onde aprenderam o método. É comum a coterapia ser usada como experiência de formação em clínicas-escola, onde alunos realizam atendimentos conjugais, normalmente com a supervisão de um professor.
Eliana mora em Jundiaí (SP), é psicanalista e se formou em Psicologia aos 49 anos, após criar os filhos. Marlene vive em Dourados (MS) e segue a linha humanista. Juntas, atendem em coterapia pacientes de diversos cantos do país de forma remota.
“Enquanto uma elabora o pensamento, a outra pode assumir a condução. A coterapia serve como apoio mútuo entre as terapeutas e também funciona como modelo para os casais”, explica Eliana.
“A coterapia é como uma orquestra. Se um terapeuta sair na frente do outro, o som não vai ficar bacana”, complementa Marlene. Por isso, a sintonia entre a dupla de terapeutas é fundamental para o funcionamento desse recurso.
Para Marlene, o maior ganho é o equilíbrio na escuta. “A presença de dois profissionais assegura que todas as vozes sejam ouvidas e respeitadas. Além disso, os terapeutas podem observar as interações de maneiras mais precisas, como um gesto, um olhar, permitindo intervenções mais eficazes e adaptadas às necessidades específicas dos membros.”
Marlene e Eliana se conheceram no Instituto de Terapia Familiar.
Arquivo pessoal
Elas afirmam que o fato de terem linhas terapêuticas divergentes não atrapalha os atendimentos.
“As diferenças não podem ser algo que vai destruir, mas sim construir algo […] Quando existe um alinhamento de aporte teórico, significa que nós duas estamos num canto e a gente sai do nosso lugar para se encontrar e construir. É como construir uma ponte. O olhar e o aporte técnico da Marlene serviu para ampliar o meu olhar”, diz Eliana.
Após cada atendimento, as psicólogas se reúnem para avaliar o caso e discutir os caminhos que podem ser percorridos. Contudo, em algumas situações, se o casal estiver tendo dificuldade de se ouvir, as terapeutas adotam uma estratégia diferente: discutem a relação dos pacientes na frente deles, enquanto eles apenas observam.
“A gente faz a conversa, e eles só prestam atenção, ficam assistindo, é como se eles vissem a história deles projetada na TV”, explica Marlene.
Além disso, para cada casal de pacientes, elas mantêm contato exclusivamente por meio de um grupo de WhatsApp, pois toda a comunicação deve ser feita a quatro. Conversas individuais são evitadas, assim ninguém se sente excluído.
Apesar das vantagens, as duas reconhecem os desafios: é preciso que os profissionais tenham maturidade emocional, baixa vaidade e disposição para dividir o espaço terapêutico.
“Para atender em coterapia, o terapeuta não pode ter um ego muito inflado, porque está ali com outro profissional, e tem um objetivo em comum que é ajudar um casal a entender o conflito. Penso que a maior dificuldade dessa prática acontecer seja o medo dos profissionais de experimentar essa ferramenta. É uma abordagem que é para todo mundo, mas nem todo mundo é para essa abordagem. Porque tem que ter essa maturidade”, pontua Marlene.
Três vozes na terapia conjugal
A psicóloga Denise Magalhães de Faria, fundadora do Instituto de Terapia Familiar (ITF) de Minas Gerais, destaca que um dos grandes desafios do atendimento conjugal é a escuta de três vozes: a voz de cada cônjuge e a do relacionamento como um todo.
“Quando a gente atende um casal tradicional, [modelo] que hoje em dia está mudando, temos duas pessoas e três sujeitos: eu, tu e nós. E muitas vezes o sujeito ‘nós’ não está claro na conjugalidade. A complexidade que o casal vai trazer no processo psicoterapêutico é de três sujeitos. Então imagina um profissional sozinho, que é o modelo tradicional, escutar três vozes”, explica Faria.
Alguns parceiros em crise agem de forma individualista, ignorando a entidade do casal. “Ele só fala dos planos dele, ela fala dos planos dela, não tem nada ‘nosso’, mas eles coabitam a mesma casa. Passam às vezes anos juntos, pagam contas juntos, mas não têm um espaço ‘nosso'”, exemplifica.
Para a fundadora do ITF, a presença de dois terapeutas pode ajudar a analisar melhor o material emocional trazido nas sessões, já que a dupla oferece uma escuta mais profunda e pontos de vista diversos.
Coterapia de casal
Arte g1/Dhara Pereira
Origem e busca pela terapia conjugal
Freud desaconselhava o tratamento de casais juntos pelo mesmo psicanalista, preferindo sessões individuais, explica a professora e supervisora da Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic, da PUC-SP, Isabel da Silva Kahn Marin.
“Dentro da psicanálise, por mais que Freud tenha uma tradição individual e alguns psicanalistas ortodoxos vão só trabalhar por aí, vai-se percebendo que trabalhar essas relações em alguns casos é absolutamente fundamental”, afirma a professora da PUC-SP.
O psicólogo Gabriel Coelho Mendonça conta que o período pós-guerra, impulsionado por transformações sociais, é marcado pela entrada das mulheres no mercado de trabalho, já que os companheiros eram enviados para lutar na guerra. Assim, elas assumiram o papel de protagonistas nas famílias e, quando os maridos voltaram da guerra, a dinâmica da casa estava alterada.
No Reino Unido, a terapia conjugal surgiu como uma resposta social para apoiar casamentos e famílias após a guerra. Inicialmente, os parceiros eram atendidos separadamente por dois terapeutas — um para cada um — que usavam o método da contratransferência (experimentando como seria estar no lugar do parceiro ausente).
Nos anos 60, a terapia familiar sistêmica e a psicoterapia de casais foi ganhando espaço, por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa, com grandes nomes como Virginia Satir e Salvador Minuchin. Para eles, esse tipo de abordagem ampliava a leitura das dinâmicas familiares e favorecia abordagens mais integrativas a partir de múltiplos olhares.
Mais do que resolver problemas
A terapia conjugal e a coterapia não servem apenas para “salvar” casamentos. Muitas vezes, o objetivo é promover reflexão e amadurecimento afetivo, mesmo que o casal decida pela separação.
Em tempos de relações mais diversas e exigentes, a terapia de casal — com um ou dois profissionais — segue sendo uma ferramenta potente para transformar vínculos afetivos.
“Nas terapias conjugais, vamos desconstruindo as ilusões de perfeição ou de proteção, buscando trabalhar com a construção compartilhada. Cada um é um. O outro não é a sua cara-metade, o que também é uma fantasia. O desafio é ter suas singularidades preservadas com intimidade, com expectativas compartilhadas”, resume Isabel Marin.
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