
Foto compartilhada em um grupo de ladies, as esposas dos Legendários
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Um grupo de mulheres chamou atenção após a publicação da série exclusiva de reportagens do g1 “Diário de um legendário”. “Ladies” é como são chamadas as esposas dos homens que passam pelo retiro masculino cristão, que virou moda entre alguns famosos e gerou polêmica nas redes sociais.
Antes, durante e depois de os homens subirem a montanha para o retiro, as mulheres se reúnem em dois grupos de mensagens.
No primeiro, apenas administradoras podiam enviar mensagens, e o canal era usado para comunicados diversos, como informes sobre reuniões presenciais e online, divulgação de novos produtos da loja dos Legendários (existe toda uma economia em torno do evento) e outros avisos gerais.
O segundo, por mais que levasse no nome a proposta de ser um espaço voltado exclusivamente para orações, se tornou um ambiente de muita interação entre as participantes, com trocas que iam muito além da espiritualidade.
O g1 recebeu os relatos de duas mulheres que participaram do grupo de uma edição do Legendários. Aline* e Zilda* têm perfis bem diferentes: Aline tem 30 anos e nunca se identificou com nenhuma religião. Zilda tem 61 anos e frequenta igrejas evangélicas há mais de 30. Ambas têm nível superior de estudo na área de humanas.
No último dia do retiro, foi justamente a fala de uma lady que colocou mais diretamente a defesa de um pensamento que pode ser usado, por exemplo, para validar a subserviência feminina no relacionamento.
Na ocasião, a esposa do diretor do Legendários Bahia afirmou que uma lady não deve ter seu dinheiro separado do marido pois isso “joga ele lá embaixo”. E que precisa, inclusive, absorver seu esposo em seu próprio negócio se deseja honrá-lo, para que ele seja próspero e assuma seu papel de “sacerdote do lar”.
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Diário de um Legendário
Após o convívio de quase dois meses no grupo de mensagens com outras mais de 400 mulheres, as duas fizeram leituras um tanto quanto opostas. Enquanto Zilda encontrou uma comunidade com a qual se identificou e passou a defender, Aline enxergou problemas. As visões sobre a submissão e o papel feminino divergem em aspectos fundamentais.
Submissão feminina
A submissão feminina é um conceito amplamente discutido por Zilda em defesa das ladies, apresentada como uma escolha consciente e espiritual dentro do casamento cristão. Ela repete uma fala que se ouve com alguma frequência entre mulheres conservadoras: “Submissão não quer dizer estar abaixo, mas sim estar sob a mesma missão” .
Para Zilda, a submissão é uma “parceria baseada em respeito, amor e propósito comum”. Mas comenta que a interpretação varia entre diferentes denominações cristãs e pessoas.
Ela enfatiza que essa submissão “não é sinônimo de opressão”, destacando que a mulher submissa mantém sua identidade e voz, sendo capaz de tomar decisões significativas em sua vida.
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Em contrapartida, Aline critica a interpretação da submissão dentro do movimento dos Legendários. Ela observa que, no grupo das Ladies, a orientação de uma sexóloga cristã reforçou uma visão negativa, onde a mulher deve meramente atender às necessidades do homem.
“O sexo, na fala dela, aparecia como um instrumento espiritual, um canal de renovação e vigor masculino, sendo esperado da mulher não apenas disponibilidade, mas entrega plena”.
Para Aline, isso é uma “retórica profundamente machista”, que reduz a complexidade das subjetividades femininas e ignora os diferentes contextos de vida das mulheres. A ideia de que a submissão pode ser uma escolha voluntária é contraposta pela percepção de que as mulheres são muitas vezes vistas apenas como suporte para os esposos.
Ladies e outros familiares recebem novos legendários em cerimônia de encerramento de um retiro
Fábio Tito/g1
Protagonismo no movimento
Aline argumenta que, apesar de a dedicação feminina ser evidente e essencial, o discurso que permeia o movimento posiciona os homens como os protagonistas da transformação espiritual.
Ela diz que pôde observar que “as mulheres são o alicerce desse movimento”, mas que essa contribuição termina sendo invisibilizada. Enquanto os homens são exaltados como futuros líderes, as mulheres permanecem nos bastidores, reforçando uma dinâmica de poder desigual.
Zilda vê as ladies como parceiras que desempenham um papel crucial no crescimento espiritual do casal. Ela defende a ideia de que a mulher seria uma “auxiliadora do marido”, contribuindo para o bem-estar da família e para a missão divina. Zilda acredita que esse papel é parte de um chamado maior, onde as mulheres podem “gerar frutos espirituais” e influenciar suas comunidades positivamente.
Papéis de gênero
Como mencionado, Zilda tem uma visão otimista sobre a submissão das ladies, enfatizando que ela deve ser “baseada em diálogo, respeito mútuo e liberdade de escolha” — o que a princípio poderia indicar papéis de gênero em pé de igualdade ou algo próximos disso.
Zilda defende que as ladies podem ser ativas e influentes na condução de suas vidas e relacionamentos. Ela traz exemplos de mulheres bíblicas que serviram a Deus e foram modelos de fé, como Sara, Ester, Priscila e Maria. Segundo ela, essas histórias mostram que a submissão pode coexistir com a autonomia e a sabedoria femininas.
Por outro lado, Aline critica a forma como essa dinâmica entre homem e mulher é muitas vezes naturalizada. Para ela, o discurso que sustenta a experiência espiritual dos homens ignora as complexidades das vidas das mulheres, resultando em uma reafirmação de papéis de gênero “historicamente naturalizados”.
Essa visão sugere que, apesar das intenções de promover uma parceria espiritual, as mulheres acabam sendo relegadas a um papel evidentemente secundário, o que pode limitar seu potencial e suas vozes dentro da comunidade.
* Aline e Zilda são nomes fictícios, escolhidos para manter o sigilo das identidade das entrevistadas.
Novos legendários aguardam pelo reencontro com suas ladies e famílias antes da cerimônia de encerramento de um retiro
Fábio Tito/g1