
Juíza é demitida por copiar sentenças no RS
A juíza Angélica Chamon Layoun, de 39 anos, demitida após investigação apontar uso de decisões idênticas em cerca de 2 mil processos, atuou na 2ª Vara Cível de Cachoeira do Sul, na Região Central do RS, realizou em média de quatro sentenças sem análise individualizada por dia, incluindo fins de semana e feriados. Ela atuou entre julho de 2022 e setembro de 2023.
Juíza é demitida por copiar decisões em mais de 2 mil processos
QUEM É: juíza demitida já reprovou na prova de sentença
“O estoque das varas chega aos milhares com tranquilidade. Agora, ela ter decisão em sentenças judiciais, nessa razão de milhares em um período tão curto, é humanamente impossível. Por mais que você tenha recursos informáticos, ainda assim é um número absolutamente desproporcional”, avalia o jurista e professor da Faculdade de Direito da UFRGS Bruno Miragem.
Outro ponto levantado pelo especialista é o desarquivamento de processos, apontado pelo Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Conforme Miragem, a prática não costuma ser feita por iniciativa do juiz e a situação é rara de acontecer.
“Como regra, o desarquivamento não pode ser feito de ofício, ou seja, por iniciativa do juiz. Necessariamente, é feito por iniciativa das partes, ou seja, de quem é interessado. É absolutamente não usual. São situações muito episódicas, muito raras de acontecer”, esclarece.
A juíza copiou as decisões e desarquivou os processos para “aumentar a produtividade”. A defesa sustenta que a magistrada foi designada para uma vara que estava há anos sem juiz titular, com processos acumulados e sem rotinas estruturadas.
“O controle de produtividade é feito há alguns anos, tanto pela Corregedoria quanto pelo Conselho Nacional de Justiça. Não traz bonificação, mas são elementos que são considerados para vários efeitos. No caso dela, inclusive, para a própria aprovação no estágio probatório”, diz.
A demissão foi assinada no dia 3 de julho pelo desembargador Alberto Delgado Neto, presidente do TJ-RS. A medida foi tomada pelo Órgão Especial do TJ-RS em fevereiro e confirmada em maio deste ano, quando o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) transitou em julgado.
“Existe uma série de deveres que estão previstos na Lei Orgânica da Magistratura. E dentre esses deveres está o dever de exatidão. O juiz tem um dever funcional de examinar os fatos do processo, as provas produzidas e decidir com base nessas provas. Isso por si só faz com que não possa haver decisões massificadas absolutamente iguais”, acrescenta.
Como fica o salário?
Angélica foi empossada em julho de 2022, mas estava afastada desde setembro de 2023, devido à apuração disciplinar. Ela começou a carreira jurídica em Pernambuco, onde foi juíza por quase seis anos.
A penalidade foi aplicada enquanto Angélica ainda estava em estágio probatório, o que permitiu a dispensa sem necessidade de processo judicial. Em nota, os advogados da magistrada classificam a sanção como desproporcional. Leia na íntegra abaixo.
Não há possibilidade de recurso interno no âmbito do Tribunal de Justiça do RS, o que motivou o ajuizamento de um Pedido de Revisão Disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O processo tramita sob sigilo, o que impede a divulgação dos argumentos apresentados na petição.
Conforme o jurista, via de regra, os vencimentos seguem durante a suspensão. A partir da demissão, o que ocorreu no início do mês, os pagamentos são interrompidos.
“Como ela não tem a garantia da vitaliciedade, se ela não cumpriu o estágio probatório, ela será demitida sem vencimentos. Ela não entra naquela regra que é mais comum, da aposentadoria compulsória, com vencimentos proporcionais”, explica.
Caso não obtenha deferimento do pedido de revisão disciplinar, a juíza demitida terá que prestar novo concurso se desejar seguir na carreira da magistratura.
“Não será mais juíza, e para voltar a exercer terá que ser aprovada e nomeada no concurso para o mesmo cargo. Ela tendo uma demissão, uma falta funcional grave no exercício, possivelmente vai ter grandes dificuldades no exame de vida pregressa”, afirma.
Os advogados argumentam que eventuais falhas operacionais, especialmente em fase de estágio probatório e diante da complexidade dos sistemas digitais utilizados, não justificariam a aplicação de uma medida disciplinar extrema. Para eles, a Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter adotado medidas pedagógicas e de orientação, e não uma punição definitiva.
Leia a nota da defesa da juíza na íntegra
A defesa manifesta profundo respeito pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas discorda veementemente da penalidade imposta à magistrada Angélica Chamon Layoun, por considerá-la desproporcional, juridicamente viciada e carente de prova de dolo ou má-fé, elementos indispensáveis à configuração de falta funcional gravíssima.
Esclarecemos que não cabe recurso interno no âmbito do TJRS. Por essa razão, foi ajuizado Pedido de Revisão Disciplinar no CNJ, onde se discute a proporcionalidade da sanção e vícios de instrução do processo disciplinar.
Por se tratar de processo que tramita sob sigilo, não é possível comentar o conteúdo integral dos autos ou os argumentos apresentados na petição de revisão disciplinar.
Ressalvado esse limite, cumpre esclarecer que a magistrada foi designada para uma vara cível que estava há anos sem juiz titular, com grande passivo processual e uma cultura de autogestão consolidada, sem rotinas estruturadas. Nesse cenário, buscou corrigir falhas operacionais, reordenar o fluxo processual e promover melhorias administrativas, enfrentando resistências internas que acabaram servindo de catalisador para o processo disciplinar.
Além dos desafios próprios de uma unidade desorganizada, a juíza enfrentou dificuldades adicionais decorrentes de discriminação velada, por ser oriunda de outro estado, mulher e mãe de uma criança de três anos à época, diagnosticada com transtorno do espectro autista (TEA).
A conciliação entre os deveres funcionais e o cuidado com uma criança com necessidades especiais representa um desafio adicional que qualquer mãe magistrada pode compreender.
Eventuais equívocos ou falhas operacionais, naturais em estágio probatório e agravados pelas dificuldades de adaptação a sistemas digitais complexos, não podem justificar o rigor da medida disciplinar aplicada.
A Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter priorizado medidas pedagógicas e de orientação, e não punições de natureza extrema, especialmente quando não há má-fé, dano às partes ou violação da moralidade.
Este caso suscita reflexões importantes sobre como a magistratura lida com as especificidades enfrentadas por mulheres magistradas, especialmente aquelas que exercem a maternidade simultaneamente à função jurisdicional.
A situação vivenciada pela magistrada Angélica poderia ocorrer com qualquer mulher que enfrente os desafios da dupla jornada profissional e maternal no exercício da magistratura.
A atuação da magistrada foi pautada pela boa-fé, pelo compromisso com o serviço público e pela transparência funcional.
Confia-se que o CNJ saberá avaliar o caso com isenção e profundidade, garantindo o respeito ao devido processo legal, à proporcionalidade da sanção e às garantias da magistratura nacional.
NILSON DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO
OAB/RS 121.624
PEDRO HENRIQUE FERREIRA LEITE
OAB/PR 60.781
ADVOGADOS DA MAGISTRADA ANGÉLICA CHAMON LAYOUN
MEDINA OSÓRIO ADVOGADOS
Angélica Chamon Layoun
Reprodução/Redes sociais/LinkedIn
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