
Tetraplégico hospitalizado há 25 anos retoma os estudos com tecnologia adaptada
Internado há 25 anos no Hospital Dom Pedro II, na Zona Norte de São Paulo, Cleyton Cipriano Pinto, de 44 anos, voltou a ter esperança de realizar um sonho antigo: concluir o ensino superior. Tetraplégico, ele recebeu um dispositivo que permite que ele controle o computador com a cabeça e ganhou uma bolsa integral para cursar a graduação a distância.
O dispositivo foi desenvolvido em cerca de três meses pelo Laboratório de Inovações Acadêmicas, que integra o projeto Mãos Livres, do Programa EAD Social do Grupo Ser Educacional.
O aparelho, encaixado na lateral dos óculos de Cleyton, foi impresso em 3D e possui sensores de movimento e proximidade, permitindo o controle do cursor com a cabeça e cliques com leves toques no rosto. A entrega ocorreu nesta quarta-feira (6).
“Eu até hoje não conhecia muitos equipamentos. Tenho 25 anos aqui dentro e sou bem pré-histórico, como costumo dizer. Ter a oportunidade de ter um aparelho como esse é literalmente uma virada para a vida de um tetraplégico. Um aparelho como esse traz uma liberdade que só mesmo a tecnologia pode nos fornecer”, afirmou.
E ressaltou: “A pessoa que não pode mover os braços, que não tem essa mobilidade, às vezes fica pensando: ‘Como falar com um amigo numa rede social? Como expor seus pensamentos? Seus sentimentos até mesmo por uma videochamada?’ Graças a Deus tem pessoas pensando nessa possibilidade e nessa situação que muitas pessoas vivem”.
O analista de inovação Rafael Pacheco Ferreira, responsável pelo desenvolvimento do equipamento, explica que a proposta era criar uma solução prática e acessível para os tetraplégicos. Nesta quarta, ele acompanhou a entrega do dispostivo para Cleyton.
“Nosso objetivo era garantir uma solução acessível, prática e funcional para que ele possa acessar as plataformas educacionais com autonomia. Para desenvolver o dispositivo, utilizamos dois sensores para captar movimentos do usuário. O design ergonômico foi pensado para priorizar o conforto e a facilidade de adaptação do usuário”, detalhou.
Tetraplégico, Cleyton Cipriano Pinto, de 44 anos, ganhou dispositivo para ajudar nos estudos
Arquivo Pessoal
Jânyo Diniz, CEO do Grupo Ser Educacional, ressalta que o objetivo do projeto é democratizar o acesso ao ensino superior entre pessoas com tetraplegia.
“Nosso projeto nasceu com o propósito de promover a inclusão por meio da educação. A história de perseverança do Cleyton nos inspira e reforça o compromisso do Grupo Ser Educacional com a transformação social. Garantir acesso à formação e às ferramentas necessárias é parte essencial desse processo”, afirmou.
Cleyton conta que soube do projeto por meio de uma amiga que também é tetraplégica e contou que havia conseguido uma bolsa de estudos.
“Ela me falou que tinha acabado de se formar também, no mesmo projeto, e falou que ia indicar o meu nome. Até então eu não dei muita bola, mas quando eu tive a primeira ligação, de uma das pessoas responsáveis, foi incrível. E quando ela me falou que seria no segundo semestre, eu fiquei ainda meio sem crer. Vibrei muito”, relatou ao g1.
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A Universidade Guarulhos (UNG), através do projeto, ofereceu a ele uma bolsa integral de graduação no curso de empreendedorismo digital. Cleyton já começa o curso neste segundo semestre.
“Ver a determinação do Cleyton mostra o quanto a educação pode ser potente na vida das pessoas”, afirmou Yuri Neiman, reitor da instituição.
Rotina no hospital
Cleyton Cipriano Pinto ficou tetraplégico em 1999
Reprodução/Instagram
Natural de São Paulo, Cleyton ficou tetraplégico depois que foi baleado em 1999. O tiro provocou uma lesão cervical completa na vértebra C5, o que o fez perder completamente os movimentos dos braços e das pernas, tendo apenas poucos movimentos preservados no braço direito.
“Faltavam alguns meses para o Natal na época e, infelizmente, eu fui em uma festa com o meu padrasto. Aconteceu uma discussão entre ele e outra pessoa. Eu fui me envolver na discussão, tentar separar e pedir paz, mas infelizmente a pessoa não gostou e me alvejou um tiro, que atingiu o pescoço, acertando a C5 da minha cervical, me deixando tetraplégico de imediato.”
Cleyton conta que chegou a se considerar “uma pessoa já morta”. “No começo, sofri muito porque eu não conhecia nada como isso que eu vivo hoje. Nada sobre o mundo da tetraplegia, nada sobre esse mundo hospitalar. Sempre fui um homem muito saudável, e até então eu não conhecia nada de hospital”, ressaltou.
Ele chegou a ficar três meses em casa, mas tomou a decisão de ir para um hospital onde pudesse ter assistência.
“Eu fiquei uns dois ou três meses em casa, sendo cuidado pela minha mãe, pela minha irmã, e elas não tinham conhecimento nenhum. Acredito que para eles foi um baque muito grande e não sabiam como lidar com a situação da melhor forma. Acabei tomando a decisão de arrumar um hospital de retaguarda, e fui parar no Hospital do Campo Limpo. Depois, logo em seguida, eles me encaminharam para esse hospital aqui, que é o Dom Pedro, onde eu estou até hoje, há 25 anos”, disse.
“Hoje a minha mãe é falecida. Era a única pessoa que tinha essa disposição realmente de estar vindo visitar, da família. O resto da família, infelizmente, não vem visitar com tanta frequência”, complementou.
Cleyton resolveu focar nos estudos. Ao longo dos anos, usou adaptadores improvisados e hastes de madeira para tentar operar o computador.
“Eu resolvi me apegar ao conhecimento das coisas para que, de certa forma, eu consiga alcançar a liberdade, que é o que eu tanto busco. É o que eu venho buscando durante todos esses anos: sair daqui e conseguir ter uma vida social, uma vida readaptável e total lá fora. Esse é meu sonho”, relatou.
Ele chegou a cursar dois semestres de direito, mas precisou abandonar a faculdade por problemas de saúde e falta de recursos. Também participou de uma aceleradora inclusiva de programação, mas acabou desistindo da área.
Mais tarde, encontrou na escrita uma forma de expressão e publicou um livro autobiográfico contando sua história.
“Esse meu livro deu muito trabalho. Eu o escrevi com a boca mesmo, com um lápis na boca, escrevendo letra por letra. Até então eu não sabia escrever nem meu nome com a boca. Com o tempo, fui fazendo meu nome, fui fazendo desenhos, pinturas, até que chegou ao ponto de fazer poesias. Aí chegou a ideia de fazer o livro. Foi passo a passo. Bem difícil. Foi letra por letra. Demorou cerca de 10 a 12 anos para ficar pronto. E pretendo, sim, escrever o próximo.”
Ter uma profissão é outro de seus sonhos: “Hoje a vida de um tetraplégico custa em média de R$ 15 mil a R$ 20 mil por mês. O custo é alto. Uma cadeira de rodas simples custa cerca de R$ 25 mil. Uma cadeira de rodas que realmente comporte a gente da melhor maneira possível chega a custar R$ 20 mil. A gente vive ganhando um salário mínimo. É impossível conseguir alcançar esses objetivos ganhando tão pouco”.
Analista de inovação Rafael Pacheco Ferreira ao lado de Cleyton
Arquivo Pessoal
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