
O Congresso Nacional protegeu os seus parlamentares em mais de 250 pedidos de abertura de processo criminal apresentados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1988 e 2001.
No período vigorou uma regra, na Constituição, que estabelecia que deputados e senadores somente poderiam ser processados criminalmente com autorização prévia da Câmara e do Senado — a depender do parlamentar.
O trecho foi removido pelo Congresso, no início dos anos 2000, em um movimento que também restringiu outras imunidades parlamentares. Agora, mais de duas décadas depois, lideranças da Câmara se articulam para retomar a regra por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Levantamento do g1 com base nos registros públicos da Câmara e do Senado aponta que, entre 1988 e 2001, apenas um parlamentar teve a abertura de processo aprovada pelo Congresso.
🚘Em 1991, o Supremo pediu autorização para apurar uma denúncia contra o então deputado Jabes Rabelo (PTB-RO). Ele havia sido acusado, pela Promotoria de Justiça de Rondônia, de ter cometido o crime de receptação de veículo roubado.
Segundo a apuração, Rabelo teria comprado um carro Ford F-1000 de um de seus empregados. O então deputado pagou 75 milhões de cruzeiros na transação. Algum tempo depois, Jabes Rabelo revendeu o veículo.
📄O Ministério Público do estado afirmou que, durante investigação, foi descoberto que todos os documentos do veículo eram falsos.
Ao se defender em plenário, Jabes Rabelo disse ser alvo de perseguição política e que não seria o “primeiro nem o último a comprar, por desconhecimento, um carro com o chassi adulterado”.
A justificativa não colou, e o plenário da Câmara concedeu autorização ao Supremo para processar o parlamentar. Foram 366 votos a 35.
Alguns meses depois, o conjunto dos deputados decidiu cassar Jabes Rabelo por outro episódio: um suposto envolvimento com tráfico de drogas e a emissão de uma carteira funcional falsa da Câmara para o seu irmão, detido com cocaína.
No Senado, houve um caso em que a licença foi concedida a pedido do próprio parlamentar. O então senador Bernardo Cabral (AM) queria que um processo de calúnia tivesse continuidade no STF para que ele pudesse provar que o que havia dito era verdade.
253 pedidos não avançaram
Sem consenso, Câmara não vota a chamada PEC da Blindagem
O caso de Jabes Rabelo, no entanto, é uma exceção no histórico de blindagem da Câmara aos pares até 2001.
⛔No período, Câmara e Senado travaram o andamento de processos, e rejeitaram, arquivaram ou ignoraram 253 pedidos enviados pelo STF para processar parlamentares. Há casos nos quais o Congresso segurou os pedidos até a morte, cassação ou fim do mandato do parlamentar.
A proteção beneficiou, inclusive, congressistas acusados de crimes graves, como tentativa de assassinato e homicídio.
Em 1993, por falta de votos, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara rejeitou o parecer do então deputado José Genoino (PT-SP) que concedia a licença e travou um processo criminal contra Nobel Moura (PSD-RO).
Moura havia sido acusado de tentativa de homicídio ao ter realizado disparos de arma de fogo contra um motorista de caminhão que havia estacionado o veículo em frente a um estabelecimento comercial do então parlamentar.
Com a rejeição na CCJ, o processo contra Nobel Moura ficou travado até que o deputado foi cassado meses depois. A cassação não veio, no entanto, por este motivo ou pelo fato de Moura ter desferido socos contra uma parlamentar dentro do plenário da Câmara.
Nobel Moura foi cassado com base em denúncias de que controlava um esquema, denunciado pelo então deputado Jair Bolsonaro (PL), de pagamento de dezenas de milhares de dólares em troca da filiação de deputados ao PSD.
Em 2001, ele foi condenado pela Justiça por ter sido mandante do assassinato do radialista Marinaldo de Souza, na zona rural de Porto Velho (RO).
Valdemar se beneficiou com regra
Outro caso semelhante é o do ex-deputado Hildebrando Pascoal (AC). Dois pedidos do STF ficaram travados por semanas até que a Casa cassou o mandato de Pascoal em 22 de setembro de 1999.
Ele era acusado de comandar um grupo de extermínio e participar de organização criminosa no Acre. Anos depois, Hildebrando Pascoal foi condenado a mais de 100 anos de prisão.
Principal cacique partidário da oposição nos dias de hoje, Valdemar Costa Neto (PL) foi um dos que se beneficiou da regra para escapar de processos durante o mandato. Foram três processos travados pela Câmara até que o deputado deixou a Casa.
No Senado, uma série de pedidos de investigações sobre delitos eleitorais foram barradas pela Casa.
Em 2000, o Supremo pediu autorização para investigar o então senador Luiz Estevão por suposto desvio de verba pública na construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo.
A Casa não analisou o pedido, mas, quatro meses depois, decidiu cassar o parlamentar — o primeiro senador cassado na história.
Autor da mudança também se livrou
O Congresso também livrou o então senador Ronaldo Cunha Lima (PB) de ser investigado por tentativa de homicídio contra o ex-governador da Paraíba Tarcísio de Miranda Burity.
Cunha Lima é o autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que eliminou a autorização prévia da Constituição.
Ele foi alvo de dois pedidos de abertura de processo, que acabaram negados pelo plenário do Senado. O STF tornou Ronaldo Cunha Lima réu em 2002, logo depois da promulgação da emenda que ele foi autor.
Em 2007, depois de renunciar ao mandato de deputado federal, ele perdeu o foro privilegiado, e o Supremo decidiu que cabia ao Tribunal do Júri de João Pessoa julgar o caso. Ele faleceu em 2012, sem ser julgado.
Fachada do Congresso Nacional
Jefferson Rudy/Agência Senado